quinta-feira, 16 de junho de 2011

O encenador Geraldo Salles fala sobre a criação do espetáculo Mãe D'Água

Transcrição da primeira entrevista com Geraldo Salles – 10 de maio de 2011

Alberto – Geraldo, como era o espetáculo Mãe D’Água?
Geraldo Salles – Ele era um espetáculo mágico. Ele era em cima, fundamentalmente, eu posso definir, ele era um sonho. Eu muitas vezes sonhei pra poder fazer o espetáculo, fazer cenas do espetáculo. Eu assisti Macunaíma [montagem de Antunes Filho, com Cacá Carvalho], em São Paulo, um pouco antes disso. E eu já estava com essa proposta de fazer um teatro voltado pra realidade amazônica, fazer uma experimentação em cima disso. Aí pintou esse texto do Raimundo Alberto, a Mãe D’Água, que era um texto pequeno, simples, mas que eu com ajuda... eu tive grande ajuda do elenco, eram pessoas novas, todos talentosíssimos, Paulinho, Paulão, Cláudio Barros, Vânia de Castro, que estavam naquela coisa que era de vidro mas se quebrou, agora, que era aquele entusiasmo, aquela paixão, de descobrir, de fazer. Então não foi sozinho, e junto com eles a gente foi descobrindo. Eu peguei esse texto, li, eu estava atrás de uma coisa, estava encantado ainda pelo Macunaíma, que tinha essa coisa do mágico, da magia, do rio, da Amazônia, tinha a Iara inclusive, tinha um momento em que aparecia a Iara – era completamente diferente do que eu fiz. Então a gente começou a fazer esse trabalho. A gente foi pro sítio da Tereza, em Colares, que era no meio do mato, que tinha um trapiche. O trapiche era o cenário da Mãe D’Água, tudo se passava num trapiche com o rio embaixo, e uma canoa, e um tronco. Aí a gente ia pra lá e ficava, seis horas da tarde... porque tinha uma hora, no texto, que ninguém podia ficar sozinho na beira do rio no trapiche, meio-dia ou seis horas da tarde, porque a Mãe D’Água aparecia encantava e levava pro fundo do rio. E a gente ia, meio-dia e seis horas da tarde, pra esse lugar lá em Colares, pra esse trapiche, e ficava em silêncio escutando, imaginando, pensando. E depois, quando a gente voltava pra Belém, cada um falava do que sentiu, do que viu. Cena por cena a gente ia pensando, imaginando, vendo. E depois tinha muito aquela coisa, um espetáculo de observação... essa coisa de colares serviu muito, do caboclo, do canoeiro, do barqueirozinho, tudo isso tinha muito, do costume, como eram as coisas, e principalmente a questão dos sons, que a gente conseguia ouvir, e fazia com que a gente viajasse nessas horas de seis horas da tarde, meio-dia, na beira de um trapiche deserto, num riozinho como esse, em que poderia aparecer a Mãe D’Água, a Iara. O espetáculo, na realidade, era uma luta feroz entre a vida e a morte. Porque tudo isso no espetáculo era um caboclo, que estava com um problema de cooperativa, era explorado pelo patrão, e a namorada tinha largado ele, não queria mais saber dele, porque estava pobre, e tudo, e tinha uma mãe do tipo daquelas caboclas que acreditava muito em Iara, em Mãe D’Água, Cobra Grande, tudo isso, e ela sempre dizia pra ele, desde criança, que ele não podia ficar num trapiche ou na beira do rio sozinho meio-dia ou seis horas da tarde, que a Mãe D’Água vinha, encantava e levava pro fundo do rio. A gente começava o espetáculo com isso, com a voz da mãe, tudo isso. Aí, esse caboclo... o espetáculo começa com ele no trapiche pensando, desiludido da vida, aí ele começa a viver uma história, que ele próprio cria, mas na realidade não é verdade o que aparece no espetáculo. Só no final fica uma interrogação, que aquilo tudo era coisa da cabeça dele, por causa da mãe, era uma fuga dele, por causa do estado em que ele estava, então ele criou aquela história, que ele queria sumir, mas através da Mãe D’Água, que ele era maravilhado com a história que contavam, e tudo isso começa a aparecer no espetáculo, e começa a aparecer de uma maneira mágica, maravilhosa. Ele tinha um amigo, o Vavá – era o [Rui] Cabocão que fazia o Mundico, fazia muito bem – o Paulão fazia o Vavá, que era o ponto da realidade, que puxava ele pro real, nas lembranças dele, e no final o Vavá deixa bem claro que o Mundico amarrou uma corda no pescoço se jogou no rio e morreu afogado, mas no sonho dele que é encenado, que aparece no espetáculo, é a Mãe D’Água que leva ele pro fundo do rio, com um séquito de Caruanas. Que castra ele, tira o órgão genital dele com a boca e leva ele pro fundo do rio. Era muito mágico, o espetáculo. Tanto que foi um auê em Ponta Grossa, quando a gente apresentou lá, os diretores, madame [Henriete] Morrineau, os diretores que assistiram ficaram encantados. E os atores embarcaram direto, era bonito. Era a primeira vez que tinha um espetáculo em Belém que tinha nu. E a Vânia de Castro fazia – foi uma grande “sacação” minha ela fazer a mãe e a Mãe D’Água, ao mesmo tempo, quer dizer, a Mãe D’Água se transformava na mãe, e vice-versa. Tinha um momento, que eu lembro, que a Mãe D’Água jogava uma corda pra ele que ele amarrava e ela amarrava como se fosse um cordão umbilical, aí ela ia se transformando na mãe. Era um espetáculo bonito, “viajandão”. Era bonito.
Alberto – Então, me conta mais, assim, da visualidade do espetáculo. Como eram os elementos de cenografia, figurino, iluminação? Como é que a visualidade contribuía para essa atmosfera de sonho que você falou?
Geraldo – Eu acho que a música contribuía, a música era do Príncipe. Tinha uma bandazinha em que ficava o Roberto [Ribeiro], irmão do Príncipe, o [Mário] Filé. A trilha sonora era muito boa. A luz era do Rolim, que depois não fez mais nada. A luz contribuía muito pra essa coisa da magia do espetáculo. Agora, a cenografia era muito simples. Era um trapiche rústico, de caibros, alto, com uma escadinha que dava no rio. Ficava bem no fundo do palco, bem no meio, e tinha uma continuação de ponte que ia lá pro fundo do palco, e tinha juta pendurada, paneiro, essas coisas todas, uma canoa do lado, e um tronco. O cenário era só isso. Figurino... a roupa de caboclo era essa roupa tradicional de caboclo, enrolada. Os Caruanas eram bonitos... a roupa. Foi o Salustiano Vilhena que fez o figurino. Os Caruanas vinham nus, eles tinham umas coisas de algas, que pareciam algas, por cima, isso era bonito. E a Mãe D’Água tinha um enorme sexo postiço – porque a Nega [Vânia de castro] não queria aparecer nua, tinha que ser nua – então o Salu bolou de fazer um sexo feminino postiço, grande, enorme, como se por ali ela devorasse, fosse o elemento de devoração dela. E que funcionava muito. Era isso o figurino, era simples. A iluminação era muito bonita, ela conseguia fazer com que o espetáculo flutuasse. O [Miguel] Chikaoka tem umas fotografias fantásticas, em que o espetáculo parece realmente flutuar. O trapiche parece uma coisa flutuante, muito bonito. E tinha essa coisa toda que dava esse encanto e essa magia.
Alberto – Geraldo, agora eu queria que você falasse como você compreende hoje o seu processo criativo pra encenar Mãe D’Água. Uma parte você já contou, essa parte de se deixar devanear, de ir pro trapiche. Mas na hora de realmente criar as imagens do espetáculo, lembrando, como é que você poderia descrever a forma como você conduziu essa criação?
Geraldo – Experimentando: isso dá certo, isso não dá certo. Uma vez eu ouvi um grande diretor dizer que a grande qualidade de um diretor de teatro é o bom gosto. É onde ele consegue discernir do certo pro errado, é o bom gosto. É a medida. Então a gente ia experimentando. Isso funciona? Não, é demais, não funciona. E insistia até chegar a um ponto satisfatório. Era esse o processo. Eu junto com eles. Porque era um processo conjunto, em que eu propunha: “Olha, agora eu quero um negócio assim dos Caruanas vindo surgindo, não sei quê, e todo mundo dava ideia, a gente experimentava, até que chegava num denominador comum que satisfazia. Mas eu, lógico, propunha coisas, vinha com coisas que eu propunha, e pedia pra que as pessoas acrescentassem um pouco mais pra gente chegar lá.
Alberto – Que coisas, por exemplo, que você propunha?
Geraldo – Como fazer com que o espectador acreditasse que os Caruanas estavam surgindo do rio, de dentro do rio. Como fazer isso? Como fazer a Mãe D’Água surgir sem vir lá do fundo, ou de um bastidor? Então tudo isso a gente foi experimentando. Tinha uma canoa, tudo o mais. Tinha uma cena em cima do trapiche, ficava uma luz só em cima do caboclo, ele escutando um som e o resto tudo apagado embaixo, não se via nada. A atriz já tinha se colocado dentro da canoa, deitada. A canoa tinha um spot dentro. Quando começava a música, que ela começava a cantar, o spot acendia como se ela estivesse saindo do fundo d’água. Foram coisas assim, que foram surgindo, bonitas.
Alberto – Essa cena da Vânia saindo de dentro da canoa talvez seja a cena que sintetize esse universo mágico do espetáculo, não é?
Geraldo – Com certeza. E a cena dos Caruanas, também, quando surgiam, que eles surgiam depois. No espetáculo, o Mundico, o caboclo, começava a lembrar do pai, que já tinha morrido, e aparecia o pai, mas vindo do fundo do rio, com um séquito de Caruanas e tudo. Essa cena, quando começava essas coisas da Mãe D’Água, Caruanas e tudo, era muito bonito, era a parte mágica do espetáculo. Os atores tinham aquela coisa de observação de Amazônia e de Pará, e de lendas, então não foi muito difícil, eram atores de talento, então não foi muito difícil a gente chegar num consenso de interpretação desses atores, para mostrar os personagens.
Alberto – Fala um pouco mais disso, quando você se refere a essa vivência das pessoas na cultura.
Geraldo – A gente procurava fazer aquela coisa da memória emotiva, isso é uma coisa velha, inclusive. De o ator procurar, dentro de alguma coisa que ele conheceu, ou que ele sonhou, ou que ele já viu em algum parente, em algum lugar, alguma coisa que remetesse a isso.
Alberto – Quer dizer, você trabalhou com essas vivências e com essa memória...
Geraldo – Exatamente.
Alberto – Por que naquele momento você quis falar sobre mito amazônico?
Geraldo – Por que eu também, como amazônida, como paraense, eu era fascinado por esses mitos também. E achava que essas histórias do mito eram absolutamente teatrais, entende? Ainda tem muita história que você ouve contar e você vê um espetáculo. Então eu achava tudo aquilo absolutamente teatral. Até que chegou na minha mão um texto como a Mãe D’Água, do Raimundo Alberto, que eu digo “Pronto, aqui já tem alguma coisa”, só que a gente criou bastante em cima. A gente não criou falas, nem nada disso.
Essa coisa de fazer um espetáculo sobre uma realidade nossa eu acho que através do mito seria interessante. O Raimundo Alberto conseguiu, através do mito, fazer um texto político, porque era político na realidade. Era político existencial. Como o Alberto Guzik fala na crítica da IstoÉ, era uma luta feroz entre a vida e a morte. A morte puxando por um lado, o outro lado a vida puxando, e tudo mais. Os elementos que levavam o cara a imaginar a morte, querer a morte, e os elementos que puxavam ele pra vida. Isso tudo através de um pano de fundo de uma história que seria uma lenda. Não era a lenda pela lenda, simplesmente: isso era interessante.
Alberto – Eu acho que era político também de fazer um teatro com referências brasileiras, amazônicas, que naquele momento não existia. Fala disso pra mim, Geraldo.   
Geraldo – Mas não era só isso. Tinha também uma história que o texto tocava e retratava a história da exploração do próprio caboclo pelo patrão, que eram os Coronéis da Amazônia, e os caboclos eram explorados por eles. Mas voltando ao teu papo, eu morei no Rio, comecei pela Escola de Teatro, fiz o curso de iniciação, depois, no Rio, tinha um diretor chamado Tite de Lemos (?), que assistiu aqui os espetáculos da Escola, do curso de iniciação teatral, tiveram quatro espetáculos... (...) Eu fazia o Martins Pena, e o Tite de Lemos assistiu. (conta a história dele no Rio, assistindo espetáculos de temas clássicos, não brasileiros, etc) Era um tipo de teatro colonizado. Dificilmente você via um texto sendo montado, só no Rio eu vi O Chão dos Penitentes, que era um texto de um autor pernambucano, que estava sendo montado no Rio de Janeiro – a primeira vez. Aí depois eu voltei, fiz escola, e isso não saiu da minha cabeça. Eu via espetáculos do Nordeste, num festival que eu tinha ido com a Escola, aí comecei a achar que só mesmo o teatro nordestino tinha uma identidade teatral brasileira. Os autores, tinha o Ariano [Suassuna], tinha outros também. Mas era Nordeste, falava do Nordeste. Eu não gosto dessa história regionalista. Falava do Nordeste mas tinha uma abrangência universal. Então eu achava que precisava ter alguma coisa assim aqui. E foi assim que a gente começou a experimentar e fazer esse tipo de teatro.
Alberto – Dentro da tua trajetória tão respeitável como encenador, qual é o lugar da Mãe D’Água, colocar em cena toda essa mitologia, esse imaginário amazônico. O que isso representa pra você?
Geraldo – Representa um marco, principalmente dentro do Grupo Experiência, porque pela primeira vez o grupo saiu de Belém do Pará, ganhou vários festivais, ficou respeitado e conhecido nacionalmente. Mas não considero o espetáculo mais bonito que eu fiz ou o melhor. Pra mim o espetáculo mais bonito que eu fiz, o mais difícil, o mais combatido, que quase não sai, foi na Igreja de Santo Alexandre, chamado Jesus Freaks. Era uma colagem do José Arthur Bogéa. Aí foi um pega pra capar, e era muito bonito.
Alberto – Você assistiu Cobra Norato. Fala pra mim das suas impressões.
Geraldo – Eu não me lembro muito. Mas tinha essa coisa de criatividade do Cláudio, que era fantástica. E tinha também essa coisa das raízes da Amazônia, mas eu não me lembro detalhadamente do espetáculo. Lembro do ator que fazia o Cobra Norato, que eu achava horrível. Mas me lembro da Natal Silva já que era maravilhosa no espetáculo. E a encenação, a movimentação... era um espetáculo que durava, eu lembro, quase duas horas, e que precisava de um fôlego enorme dos atores, porque tinha momentos em que parecia que o Barradas tinha enlouquecido, de tanta movimentação que o espetáculo tinha. Realmente era um espetáculo de autoria, autoral. Inteiramente autoral.
Alberto – Quais imagens de Cobra Norato você lembra?
Geraldo – Lembro dessa coisa da movimentação cênica, que era fantástica. Que precisava de um grande fôlego, de um grande preparo do coro, do elenco que fazia o espetáculo.
Alberto – E o que o Cláudio Barradas representa pra você, na sua formação?
Geraldo – Eu comecei com ele. Comecei no Auto da Compadecida, no Colégio Nazaré, com ele. Eu era aluno do colégio. Foi num concurso de declamação, que ele foi o júri. Aí eu ganhei e ele me convidou, se eu não queria fazer teatro, o Auto da Compadecida. Aí eu fui fazer um papel pequeno. Nisso acabou que eu acabei lendo o papel do Chicó, que era o segundo papel da peça, aí eu acabei ficando com o Chicó, aí eu fui a revelação, como ator, do espetáculo. Aí pronto. O Barradas foi muito importante. Ele me dirigiu no Coronel de Macambira, também, e outros espetáculos que eu não me lembro agora. Mas ele foi a minha grande escola, sem dúvida nenhuma. Era uma pessoa que sabia... sabia, não, sabe de teatro. Ele acha que talvez esteja ultrapassado, eu acho que não está, ele só precisa volta à forma, fazer, porque o artista, o ator, o diretor, é tipo um atleta, ele precisa se exercitar porque senão ele perde a forma. Quem tem talento não perde nunca, mas perde, de certa maneira, algumas habilidades. Barradas pra mim foi o grande mestre. Os outros, o Amir Haddad, acho que veio pra experimentar em cima da gente. Diretor de teatro mesmo que acrescentou, e com quem eu aprendi, foi com ele, Cláudio Barradas.
Alberto – Voltando ao Mãe D’Água, se você tivesse que livremente pensar quais seus princípios criativos como encenador para chegar naquele resultado do espetáculo, o que você falaria.
Geraldo – Não sei. Tanto que essa proposta da gente transformar Mãe D’Água num musical é uma coisa que eu nem quis pensar ainda a respeito. E depois eu sou um tipo de diretor que só depois que eu começo a história é que eu realmente me envolvo. Antes me dá um certo medo de me antecipar e começar a jogar errado. Porque eu acho que é um jogo, também. É um jogo contra a palavra, com a palavra, com o movimento, com uma série de coisas.
Alberto – Você falou que sonhava com a Mãe D’Água...
Geraldo – Mas eu já estava no processo.
Alberto – Como eram esses sonhos? Como era o processo de criar sonhando?
Geraldo – Eram tão intensos e tão envolventes os ensaios da gente, que eu voltava pra casa e custava a dormir. Era muito difícil porque não saia o filme da minha cabeça, e, por exemplo, uma coisa que eu não tinha conseguido, que não me satisfez naquele dia, naquela noite, ficava na minha cabeça, eu ficava procurando, procurando, procurando... aí eu sonhava. Sonhava e, às vezes, vinha uma resposta que eu achava que deveria ser experimentada, e dava certo. Às vezes não dava, mas às vezes dava.
Alberto – Quer dizer que tem cenas na Mãe D’Água que nasceram dos seus sonhos?
Geraldo – Dos sonhos. Sim, dos sonhos. Dos delírios.     



Nenhum comentário:

Postar um comentário