quinta-feira, 16 de junho de 2011

Primeiros escritos em busca de uma introdução...

1.      INTRODUÇÃO

            Quando eu era criança, costumava passar férias numa fazenda chamada Santa Maria, localizada no município de Cachoeira do Arari, na Ilha de Marajó. A casa principal dessa fazenda é um grande chalé de madeira que fica às margens do rio Camará. Na beira do rio existe um trapiche onde ficam amarradas as embarcações. Para alcançar a casa, quem chega de barco ou canoa percorre um passeio coberto de mangueiras, com uma extensão de aproximadamente cinquenta metros. Lembro que nesse terreno arborizado que circunda o chalé havia um lago com uma canoinha, balanços abrigados à sombra de um bambuzal e um grande viveiro povoado com criações de patos, galinhas e outras aves domésticas. Olhando através da cerca de madeira que isolava o terreno avistava-se, ao longe, as casas dos vaqueiros, encravadas no meio de imensos campos onde tranquilamente pastavam bois, cavalos e búfalos.
            Curioso é perceber que, apesar de ter essa memória quase fotográfica do Marajó da minha infância, o mesmo não acontece com os fatos vivenciados ali, naquele tempo. Contar o vivido torna-se muito mais complexo do que descrever a paisagem. Hoje percebo que sou capaz de rememorar menos os acontecimentos e mais as sensações, como se fossem pedaços de memória que, ao serem lembrados, se atualizam no meu corpo por obra da imaginação. Ainda posso sentir o gosto adocicado da água barrenta do rio, o cheiro de esterco que soprava dos currais, o vento quente que batia no meu rosto quando eu galopava a cavalo como se quisesse vencer a infinitude daqueles campos encharcados, ou ainda aquela cor de mistério da dimensão cósmica das coisas que se ocultava na escuridão da mata quando a canoa solitária em que eu viajava varava a maré no silêncio da madrugada.
            A sensação de agora perceber essas sensações me faz compreender o pensamento de Gaston Bachelard expresso em A poética do devaneio, quando o autor afirma que “o passado rememorado não é simplesmente um passado da percepção” (1988, p. 99), sobretudo no “domínio das recordações da infância, o domínio das imagens amadas” (p. 20), onde “se unem mais intimamente imaginação e memória” (p. 102) e ambas “aparecem em um complexo indissolúvel” (p. 99). Usando outras palavras, nesse “campo de ruínas psicológicas” ou “amontoado de recordações” (1988, p. 94) que é a nossa memória, meu próprio ato de rememorar é também, a cada instante, reinvenção da minha vida vivida, e atualização dela, onde não mais se distingue o que foi acontecimento real e o que é agora imaginado. Nas palavras de Bachelard, uma síntese perturbadora: “Toda nossa infância está por ser imaginada” (p. 94).
            É nessa perspectiva de uma memória que se quer perdida (ou encontrada) entre o vivido e o imaginado, que emerge de maneira nebulosa em meus devaneios uma certa história ligada ao Marajó – história que, sinceramente, não posso jamais afirmar que existiu. Ela me foi contada não lembro exatamente por quem, não sei bem onde, nem quando, muito menos em qual situação. É até possível pensar: terá sido sonhada? Sei que dessa história nebulosa ficaram uma imagem e um perigo. A imagem, assustadora, é a de uma grande cobra adormecida num buraco na terra, localizado exatamente embaixo da sede daquela fazenda. A noção do tamanho do bicho, ao que parece, construíra-se em minha imaginação quando o narrador teria dito que a cabeça estaria debaixo da capelinha que ficava dentro do chalé ostentando uma imagem de madeira de um santo do qual também não me recordo o nome, enquanto a ponta do rabo alcançaria o trapiche, lá na beira do rio. E o perigo a que me referi era o seguinte: no dia em que aquela enorme cobra acordasse, e se mexesse, tudo que estivesse em cima da terra desmoronaria. Não sei dizer ao certo quanto tempo vivi esperando que tal episódio de fato acontecesse, por uma razão muito simples: em minha imaginação infantil, aquela cobra não era absolutamente uma criatura lendária. Ao contrário: ela existia, era real. E agora, sempre que rememoro essa sensação de ter ouvido essa história da cobra adormecida, estou sempre a reinventá-la, já que “sonhamos tudo o que (...) poderia ter sido” (p. 95) “no limite da história e da lenda”, quando “a memória sonha, o devaneio lembra” (p. 20) ou: “Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos” (p. 96).

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