Quando eu era criança, costumava passar férias numa fazenda chamada Santa Maria, localizada no município de Cachoeira do Arari, na Ilha de Marajó. A casa principal dessa fazenda é um grande chalé de madeira que fica às margens do rio Camará. Na beira do rio existe um trapiche onde ficam amarradas as embarcações. Para alcançar a casa, quem chega de barco ou canoa percorre um passeio coberto de mangueiras, com uma extensão de aproximadamente cinquenta metros. Lembro que nesse terreno arborizado que circunda o chalé havia um lago com uma canoinha, balanços abrigados à sombra de um bambuzal e um grande viveiro povoado com criações de patos, galinhas e outras aves domésticas. Olhando através da cerca de madeira que isolava o terreno avistava-se, ao longe, as casas dos vaqueiros, encravadas no meio de imensos campos onde tranquilamente pastavam bois, cavalos e búfalos.
Curioso é perceber que, apesar de ter essa memória quase fotográfica do Marajó da minha infância, o mesmo não acontece com os fatos vivenciados ali, naquele tempo. Contar o vivido torna-se muito mais complexo do que descrever a paisagem. Hoje percebo que sou capaz de rememorar menos os acontecimentos e mais as sensações, como se fossem pedaços de memória que, ao serem lembrados, se atualizam no meu corpo por obra da imaginação. Ainda posso sentir o gosto adocicado da água barrenta do rio, o cheiro de esterco que soprava dos currais, o vento quente que batia no meu rosto quando eu galopava a cavalo como se quisesse vencer a infinitude daqueles campos encharcados, ou ainda aquela cor de mistério da dimensão cósmica das coisas que se ocultava na escuridão da mata quando a canoa solitária em que eu viajava varava a maré no silêncio da madrugada.
A sensação de agora perceber essas sensações me faz compreender o pensamento de Gaston Bachelard expresso em A poética do devaneio, quando o autor afirma que “o passado rememorado não é simplesmente um passado da percepção” (1988, p. 99), sobretudo no “domínio das recordações da infância, o domínio das imagens amadas” (p. 20), onde “se unem mais intimamente imaginação e memória” (p. 102) e ambas “aparecem em um complexo indissolúvel” (p. 99). Usando outras palavras, nesse “campo de ruínas psicológicas” ou “amontoado de recordações” (1988, p. 94) que é a nossa memória, meu próprio ato de rememorar é também, a cada instante, reinvenção da minha vida vivida, e atualização dela, onde não mais se distingue o que foi acontecimento real e o que é agora imaginado. Nas palavras de Bachelard, uma síntese perturbadora: “Toda nossa infância está por ser imaginada” (p. 94).
É nessa perspectiva de uma memória que se quer perdida (ou encontrada) entre o vivido e o imaginado, que emerge de maneira nebulosa em meus devaneios uma certa história ligada ao Marajó – história que, sinceramente, não posso jamais afirmar que existiu. Ela me foi contada não lembro exatamente por quem, não sei bem onde, nem quando, muito menos em qual situação. É até possível pensar: terá sido sonhada? Sei que dessa história nebulosa ficaram uma imagem e um perigo. A imagem, assustadora, é a de uma grande cobra adormecida num buraco na terra, localizado exatamente embaixo da sede daquela fazenda. A noção do tamanho do bicho, ao que parece, construíra-se em minha imaginação quando o narrador teria dito que a cabeça estaria debaixo da capelinha que ficava dentro do chalé ostentando uma imagem de madeira de um santo do qual também não me recordo o nome, enquanto a ponta do rabo alcançaria o trapiche, lá na beira do rio. E o perigo a que me referi era o seguinte: no dia em que aquela enorme cobra acordasse, e se mexesse, tudo que estivesse em cima da terra desmoronaria. Não sei dizer ao certo quanto tempo vivi esperando que tal episódio de fato acontecesse, por uma razão muito simples: em minha imaginação infantil, aquela cobra não era absolutamente uma criatura lendária. Ao contrário: ela existia, era real. E agora, sempre que rememoro essa sensação de ter ouvido essa história da cobra adormecida, estou sempre a reinventá-la, já que “sonhamos tudo o que (...) poderia ter sido” (p. 95) “no limite da história e da lenda”, quando “a memória sonha, o devaneio lembra” (p. 20) ou: “Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos” (p. 96).
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