quinta-feira, 16 de junho de 2011

Texto original da peça Mãe D'Água, do dramaturgo paraense Raimundo Alberto, montado pelo grupo Experiência em 1980

PERSONAGENS  :


-     UIARA (*)
-          MUNDICO
-          VAVÁ 
-     A MÃE
-          O PAI
-          MUNDICO II (Menino)
-          MUNDICO III (Adolescente)
-          NEUZINHA
-          XAVIER
-          MILICA
-          ASSIS
-          CHAGAS
e
-          CORO / CORPO DE BAILE  representando os CARUANAS / TRABALHADORES / REZADEIRAS DA LINHA DO FUNDO / CANTOR e FREGUESES DO CABARÉ.

(*)  Mãe D´água, em Tupi. Também chamada de Iara.

AÇÃO     :      Beira de um rio na Amazônia.

ÉPOCA   :     Em algum entardecer, nos anos 70 (século XX).

SINOPSE:     Jovem caboclo de um povoado amazônico acaba de se banhar no rio. Prepara-se para ir a uma reunião clandestina com outros trabalhadores, moradores de um micro povoado chamado Gota do Sereno. Está, no momento, diante de um intenso conflito: aceitar passivamente a condição ancestral de trabalhador-escravo ou, como a única esperança dos demais, arriscar sua vida, ultrapassando as fronteiras do rio e da floresta, para chegar até à cidade grande e poder, assim, denunciar o jugo escravista que, há várias gerações, domina a comunidade. Sozinho, na pequena ribeira, eis que lhe aparece, com todos os sortilégios, a poderosa Mãe D’água. A Uiara vem lhe  propor, então, uma outra escolha.


***



ESTE TEXTO SÓ PODERÁ SER REPRESENTADO, NO TODO OU EM PARTE, COM AUTORIZAÇÃO VIA SBAT- SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES
(REG. 12.769, DE 28.09.72)



CENÁRIO:


Amazônia.

Pequena praia de areia barrenta, na parte baixa de um beira-rio.

Um trapiche conduz a um barranco, que se projeta para além das coxias.

O alto vão entre os esteios oferece espaço livre para compor cenas eventuais como as do barraco, da capela, do cabaré etc.

Outros elementos compõem a cenografia: uma tina de lavar roupa, feita com um pequeno barril cortado ao meio; uma rede de pescar, estendida sobre um varal de taquaras; pedras e troncos de árvores secionados; e uma canoa emborcada, à qual está atada uma espécie de âncora, formada por uma pedra e uma extensa corda.

A parte convencionada como rio prolonga-se para um dos cantos do palco.
Todo esse espaço cênico é envolvido por plantas, cipós e trepadeiras da grande floresta.


***

A ação transcorre em vários planos –  realidade, lembranças, pensamentos, fantasias –
e se desenvolve nos três espaços básicos: o trapiche, a praia, o rio.
Há cenas, porém, em que espaço e tempo se confundem.


***

PRÓLOGO


Com seus corpos nus, cobertos apenas por algas e outras plantas aquáticas, os CARUANAS  seres mitológicos,  que habitam o fundo dos rios   realizam uma coreografia ritual ao som de atabaques e outras percussões.

CORO            CARUANAS          Todo homem busca / o fundo das coisas
e quer entender / o que há de ser
para além do Mundo

Se o mundo se move / sem qualquer sentido
viver é buscar / o que existirá
para além do Homem

Caruanas somos / vivemos na mente
que mergulha e nada / nas ondas profundas
do Inconsciente

Nas águas do meio / do fim e começo
de todas as vidas / e de toda a História
do Homem no Mundo.


***

CENA 1

MÚSICA   -    Instrumental, mágica , primitiva.  Decresce, para se ouvir sons da mata, que se
alternam com o marulhar de pequenas ondas.

Entardecer.  Dois caboclos acabam de se banhar no rio. VAVÁ o mais musculoso e trintão retorna à margem, enxuga-se com uma toalha de saco de açúcar, dessas com os fios desfiados nas pontas.  MUNDICO    ainda bem jovem   já semi-vestido e de toalha no pescoço, observa o horizonte.

MUNDICO   O Sol já vai s’ embora. É hora da Mãe D’ água vir se pentear.
VAVÁ             Égua, Mundico, não vê que isso tudo é conversa fiada?
MUNDICO    Pois acho que é vero, sim.  Vavá, já ficaste alguma vez na mata, sozinho?
VAVÁ             (VESTINDO UM CALÇÃO DESBOTADO)  Não tem nem conta. Caçando.
MUNDICO    E tu nunca sentiu uma coisa esquisita? Nunca se deu conta que a gente deixa de ser gente e vira bicho que corre, ave que canta... árvore... planta... folha... flor... ou até mesmo uma pedra?
VAVÁ             Uma pedra?!
MUNDICO    É. Pares´que a gente já está ali de muito tempo. Como se fosse nascido e criado lá mesmo.
VAVÁ             Por isso que o pessoal diz que tu és biruta. Eu nunca senti foi nada. Fico mesmo cuidando é de pegar uma capivara bem gorda.
MUNDICO    É que nem agora. Espia como é bonito o céu, todo tingido, essa cantoria toda que vem da mata, as águas no remanso...
VAVÁ             É mesmo, que calmaria! (VESTE UMA CALÇA JÁ BEM SURRADA).
MUNDICO    É como se a gente, a mata, a canoa, o rio...  fosse tudo uma coisa só.
VAVÁ             Uma coisa só?

Recolhe seus pertences, entre os quais um pedaço de sabão, numa lata de sardinha, com um pauzinho fincado no meio. Procura, nos teréns, um barbante grosso, para servir de cinto.

MUNDICO    Pois até daquele bando de periquitos que passa por aqui, gritando    Cadê  a noite? Cadê  a noite?” –  de tudo me sinto dono e tudo é dono de mim. Mas  a gente fica assim, meio...
VAVÁ             Alesado?
MUNDICO    Não. Como quem tem vontade de morrer. (TEMPO. VAVÁ OBSERVA O AMIGO, PREOCUPADO) É nessas horas que a minha mãe dizia: toma jeito, rapaz! Cuidado com a Mãe D’ água!

CENA 2

 Sons de maré cheia. MUNDICO II (MENINO) atira pedrinhas para formar círculos nas

águas. A MÃE, em seu pobre vestido de chita, tira roupa de uma tina e pendura nos esteios

do trapiche.


A MÃE           Menino, sai da beira do rio!  Não vê que é hora da Mãe D’água vir se pentear?!





CENA 3        

MÚSICA        Coro dos  TRABALHADORES.

CORO            Menino, sai logo / da beira do rio
lá vem a Mãe D’água / marido buscar
te pega com jeito / te faz caruana
te leva pro fundo / tu vais te encantar

CENA 4

MUND. II       Me encantar, mãe? De que jeito?
A MÃE           A Mãe D’água tem chamego  pra banda de rapaz novo e quando ela vê um
                                   sozinho, aqui na beira do rio, tira logo uma cantiga, pra mode o pequeno se                             abestalhar.

CORO            Quando a Uiara canta / teu corpo arrepia / te deixa mofino / te prende no chão. / E só não se encanta / nem casa com ela / quem tapa os ouvidos / com as conchas da mão.

A MÃE           Quando ela aparece pra gente,  pares´que o mundo todo parou. Não tem                                   mais vento soprando, nenhuma nuvem se mexe no céu.  A gente fica assim,                           dum jeito, que nem sei como dizer. Igualzinho o Uirapuru, quando começa a                         cantar.

CORO            Quando o Uirapuru / que vive escondido / no fundo da mata / começa a cantar /                       tudo que é bicho / no mato se cala. / Assim vai o moço / a Uiara encantar.

MUND. II       Mas como é que a senhora sabe disso? A senhora já viu ela, Mãe?
A MÃE           Com os meus olhos não vi, pirralho.  (SAINDO DE CENA) Mas o povo conta.

CORO            (COMO NUM ECO) O povo conta... o povo conta... o povo conta.

CENA 5

 

MUNDICO II olha para o rio, amedrontado, recolhe as roupas num cesto de palha e foge, perseguido pelos TRABALHADORES que cantam, em tom jocoso:

CORO            Menino, sai logo / da beira do rio / lá vem a Mãe D´água / marido buscar...

CENA 6  

VAVÁ             Égua, Mundico, não vê que a gente já ‘tá crescido demais pra se fiar nessas histórias?  É tudo conversa pra boi dormir e pirralho ficar sem sono.

Amarra sua toalha na cabeça e, imitando mulher, ergue o amigo nos braços, tentando segurá-lo firme, como a um bebê.




MÚSICA        Tradicional canção de ninar, adaptada e em tom de deboche.

VAVÁ             Dorme, curumim / que a noite já vem
não deixa a Mãe D’água / levar meu neném!
Papai trouxe a caça / Mamãe vai cozinhar
                        dorme, que a Mãe D’água / não vem te buscar!

MUNDICO    Égua, Vavá, sai pra lá! Minha mãe sempre dizia: a Uiara, quando se engraça de um macho, acende logo o facho.
VAVÁ             Pares´que ela não quis nada foi com o Xavier. Também, com aquela cara de mucura chichica!
MUNDICO    Mas ele jura que uma vez tava pescando e viu...

CENA 7  

XAVIER         Vi sim, eu vi! Com estes olhos que, um dia, as minhocas vão comer.       
                                  
Interior de um barraco típico da região. Apenas sugestão de cenário, entre os esteios do trapiche, com uma pequena mesa, quatro bancos rústicos e alguns acessórios.

Trabalhadores de Gota do Sereno. Alguns jogam baralho. De vez em quando, bebem cachaça em velhos canecos de ágate ou em latinhas sem rótulo de leite condensado. A um canto mais escuro, NEUZINHA e MUNDICO II (adolescente) trocam risos e sussurros.

XAVIER         Primeiro,  foi aquele cheiro de mulher gostosa.
MILICA          Com´ assim? Se ela é peixe, tinha que ter era pitiú! (RISADA GERAL)
XAVIER         Mas tinha cheiro, sim e... huuuum! De patchuli! Depois, foi aquela cantoria, de arrepiar até cabelo de defunto morto.
ASSIS            Defunto morto?!
XAVIER         Não sabe que o cabelo da gente fica vivinho, mesmo depois que o defunto morre? Só sei que eu comecei a me sacudir todo e, quando dei por mim, tinha virado uma onça.
CHAGAS      Uma onça?!
XAVIER         É sim, mas de raiva! (TOM) Com´então, Xavier! Logo agora?! (TOM) É que eu ´tinha acabado de  pegar um tucunaré assim, ó, paidégua e já ´tava quase pegando uma piramutaba...
MILICA          Eras, Seu Menino, não arrodeia!
ASSIS            E a mulher-peixe?
XAVIER         Pois foi aí que ela apareceu. Como quem ‘tá logo ali, ó, se aprochegando da Neuzinha.
NEUZINHA   (OLHA PARA TRÁS E PARA OS LADOS E, PUXANDO MUNDICO II PELAS MÃOS, CORRE  PARA JUNTO DOS DEMAIS) Ai meu Deus! Cruz, credo!
MUND. II       E ela é bonita?
XAVIER         De fazer vista na gente. A cabeleira dela, verdinha, batia no chão que se espalhava. (SERVE-SE DA PINGA) Tapei meus olhos com as mãos, assim, mas fiquei espiando. (RISO SAFADO) E lá estava ela, ali, bem a locé. Sem nada por cima, sem nada por baixo.
CHAGAS      Peladinha?!
MUND. II       Égua, mano, isso agora é que me deu gosto de ouvir.

ASSIS            Ô Mundico, olha o respeito. Não vê que aqui tem moça direita?!
MILICA          Axi, Seu Menino, o que entorta as moças é outra coisa.
NEUZINHA              Eras, papai, deixa o Xavier contar o que ele viu.
CORO            Conta, sumano, conta!

CENA 8 

XAVIER         (CRUZANDO AS PERNAS E IMITANDO A BREJEIRICE DA UUIARA)  Ela se
sentou numa pedra assim, ó e ficou se penteando, c’um pente feito de espinha de pirarucu. A pois então... não é que a zinha começou a me chamar?!
CORO            Vem cá, meu rapaz, vem cá!  
XAVIER         Sou doido, mas não vou lá.
CORO            Vem cá, que tu vais gostar! 
XAVIER         Tu queres é me encantar. (TEMPO) Seu espelho era uma concha, com                                     pedrinhas de brilhante. Me olhou toda faceira e tornou a me chamar.
CORO            Vem cá, meu rapaz, vem cá!  
 XAVIER       Sou doido, mas não vou lá.
CORO            Vem cá, que tu vais gostar! 
XAVIER         Tu queres é me encantar. (TEMPO) Tinha escama pelo corpo, que nem um                              tamuatá, mas no resto... (OUTRO RISINHO SAFADO)
MUND. II       Era mulher?!
XAVIER         E que mulher! (BEBENDO MAIS UM TRAGO) Foi aí que olhei pra minha sombra e me dei conta que ´stava sentado em cima dela.
NEUZINHA  Em cima de quem?
CORO            Da Mãe D’água?!
XAVIER         Nã nã não, da minha sombra.  Era meio-dia em ponto.
CORO            Aaaah! Booom!
CHAGAS      Mas diz logo, sumano: o quê que a danada fez contigo? (MAIS RISOS) 
XAVIER         Égua, a bruxa d´água não parou de me chamar...
CORO / X.     Vem cá, meu rapaz, vem cá...  (REPETE ATÉ) Tu queres é me encantar.
              
CENA 9  

ASSIS            O Xavier só vive coçado.
            MILICA          Vai ver que ele molhou o gogó fora da conta, com essa água que passarinho                           não bebe.
CHAGAS      Aí foi tirar uma sesta... e deu aquela sonhadeira!
NEUZINHA   Xavier, tu viste se a Rainha tem mesmo aquilo, assim, desse jeito? (GESTO COM OS POLEGARES E OS INDICADORES UNIDOS)
ASSIS            (ANTE O RISO DOS DEMAIS) Neuzinha! Que modos são esses?
MUND. II                   Ora, Seu Assis, então não sabe o que o povo conta?
XAVIER                     A Maldita tem um olho e uma boca, a mais do que a gente. (MOSTRANDO A             NUCA) É bem aqui, ó, lá nela.
                        NEUZINHA   E diz que é lá que a talzinha esconde toda a mandinga.
MILICA                      Mas agora me fala, Xavier: como foi que tu não se encantou?
XAVIER                    (BEIJANDO A MEDALHA DE UM CORDÃO NO PESCOÇO)  Eras, Dona Milica! É que eu me peguei com Nossa Senhora de Nazaré e saí de lá remando, com tanta sustança que, quando dei por mim, já ‘tava era naquele tal de oceano
                                  

                        salgado, com um bando de baleias, tudo assim, ó, de boca aberta, doidinhas pra me pegar.
ASSIS            Égua, Xavier, tu  não se toca?
MILICA          Mas que potoca!!!
CORO            (APUPANDO XAVIER, ENQUANTO DESFAZEM A CENA)            Vem cá, Xavier,
                        vem cá! / Vem cá, que eu vou te encantar! / Vem cá, Xavier, vem cá! / Vem cá,
                        que tu vais gostar!  

CENA 10
  
MUNDICO    (CONTEMPLATIVO)  Diz que a sina de um rio é se perder lá no mar. O meu pensar é que nem um rio, querendo ganhar o rumo.
VAVÁ             Égua, mano! Tu sabes que o patrão já anda enfezado contigo.
MUNDICO    Ele ‘tá sempre enfezado com todo mundo.
VAVÁ             E aquele carão que ele te passou, hoje, lá no armazém? Te cuida, sumano!
MUNDICO    Mas me cuidar de quê?
VAVÁ             Desses teus modos. Essa história de ficar assim, no meio da obrigação, que nem um apalermado. Égua, sumano, paresqu´ assim que tu não liga mais pra nada.
MUNDICO    Égua, n´é toda hora, não. É que tem vez que ´stou fazendo o meu serviço direitinho, que nem os outros, mas aí... aí eu vejo uma ave passar no céu... uma folha caindo, de mansinho, no remanso do rio... aí eu paro, fico espiando aquilo tudo e penso: apesar das feiúras do mundo, ainda tem muita coisa boa pra se ver e pra se gostar!
VAVÁ             Mas olha o que ´stou dizendo: patrão não bota doce no café da gente.
MUNDICO    Pois ele pode querer mandar em tudo, mas ninguém manda aqui, na minha
                        cismadeira.  
VAVÁ                        Égua, tu tens é que te cuidar, sim senhor. Os capangas do velho não deixa                              ninguém ficar parado. Tu não como ente trabalha? Não dá nem pra piscar os                      olhos. Tira coisas do barco que chega, bota coisas no barco que sai...
 MUNDICO   E um pouco da gente também se vai, em cada barco, rio a fora!

CENA 11 

 TRABALHADORES, com sacas enormes, descem o trapiche, cruzam o espaço cênico, rumo às coxias e retornam, num monótono ir-e-vir. A eles junta-se VAVÁ e sua carga respectiva.

CORO                       Ô barco que vai / ô barco que vem
                                   comprando o que leva / vendendo o que traz
ô barco que vem / ô barco que vai
me leva a tristeza / me traz minha paz.

CENA 12 

Ao passarem por MUNDICO, sentado em seu fardo e com o olhar bem longe: 

MUNDICO    De onde vem esse barco?
CORO            Não sei, não senhor.
MUNDICO    Pra onde vai esse barco?
CORO            Não sei, não senhor.
MUNDICO    Vou pedir a esse barco...
CORO            O quê, meu senhor?
MUNDICO    Me  traz  o meu bem!
CORO            Não posso, senhor.
MUNDICO    Me leva pra longe.
CORO            Não devo, senhor. (TEMPO) Ô barco que vai / ô barco que vem...

CENA 13
 
Os TRABALHADORES continuam no vai-e-vem, em coro ritmado e, ao voltarem na direção de MUNDICO, param em torno dele, que pegou um papel de embrulho e se pôs a desenhar.

VAVÁ             Vamos trabalhar, sumano!
ASSIS                       Tem muito saco lá em cima.
XAVIER         Tem muito barco cá embaixo.
VAVÁ             Não atrapalha a carregação!
CHAGAS      Égua do cara avoado!
ASSIS            Sempre assim. Desde pirralho.
XAVIER         Ou espiando pra longe...
CHAGAS      Ou com a cara no papel.

CENA 14
  
A essa menção, param em torno do jovem:

XAVIER         Égua, mano, pra quê tu quer tanto papel? (RISOS DOS DEMAIS)
MUNDICO    Pra botar nele as coisas que eu vejo no mundo, do jeito que o meu coração enxerga.
VAVÁ             (MOSTRANDO ALGUNS DESENHOS, A LÁPIS, QUE TIRA DO BORNAL DO AMIGO) Olha aqui, pessoal, espia só como ele faz.
XAVIER         Pai-d’égua!
CHAGAS      Iguazinho como se vê: o rio, a mata...
VAVÁ             As canoas...
MUNDICO    E este aqui é o meu barraco.
CHAGAS      Diz que lá dentro é mais cheio de cacarecos que o presépio da capela.
ASSIS            Nem parece casa de homem.
MUNDICO    Mas que fuxico! Os índios machos também se enfeitam. E a gente não é tudo neto de índio?
XAVIER         É sim, curumim! Por isso que ele gosta de enfeitar tudo que é parede da casa dele, com as figuras de revista que a patroa joga fora.
CHAGAS      E pra quê que tu faz tudo isso?
MUNDICO    Vocês se lembram da festa de São João, quando a gente fica de prosa na roda da fogueira? Meu pai gostava de tirar uns versos assim: Se tua vida ficou feia / o bonito vai buscar / rasga o choro, põe no lixo / vem com o riso te enfeitar. / Nossa casa é muito mais / que o lugar onde se mora / ao entrar, deixa a tristeza / no capacho lá de fora!
XAVIER         Égua, Mundico! Isso é que tirar verso bonito! (PALMAS).



CENA 16

CHAGAS      Esse Mundico!  A cabeça é que nem cupuaçu: por fora, casca bem dura; por dentro, miolo mole.
XAVIER         E ainda por cima, cheio de caroço pra descascar.
VAVÁ             Égua, minha gente, deixa de caçoar do rapaz!
CHAGAS      Mas foi por isso que a filha daquele ali, ó (ASSIS, QUE ESTÁ URINANDO                                ENTRE OS ESTEIOS DO TRAPICHE) botou enfeite na testa do alesado.  
XAVIER         É, foi pegar no saco do filho do patrão, pensando que era bacuri...
CHAGAS      Aí ele botou um bacorinho no bucho dela.
XAVIER         E o patrão mandou a pequena pra bem longe, no primeiro barco que passou.

Os TRABALHADORES, inclusive MUNDICO, pegam seus fardos e recompõem a fila, até sair de cena.

CORO            Ô barco que vai / ô barco que vem... etc.

CENA 17

Os dois rapazes retornam à cena inicial.

MUNDICO    (PREPARANDO UM CIGARRO DE PALHINHA) Ah, Vavá! O raio do Amor fez um estrago medonho na vela do meu bote, roeu a popa do meu casco e até hoje ainda dói,  na proa da minh´alma!
VAVÁ             Tristeza não paga dívida, sumano.
MUNDICO    Pois pra mim, só tem uma alegria que paga. Ah se a Neuzinha ´tivesse aqui, agora!
VAVÁ            Mesmo depois que ela deu com os burros n’água?
MUNDICO    Mesmo depois de tanto coice de burro aqui, dentro de mim. Eita ferro! Que
gostosura que havia de ser! A gente se banhava no rio, depois vinha deitar na canoa... aí eu brincava com ela, ela brincava comigo... e a gente se lavava aqui mesmo.
VAVÁ             Égua, mano! Vocês iam passar era a noite inteirinha, entrando e saindo de dentro do rio.
CENA 18

MÚSICA                    Instrumental.

NEUZINHA e MUNDICO II (adolescente) descem do trapiche, entre risos, gritinhos e interjeições juvenis, num corre-pega-larga-e-corre por entre os esteios, despindo-se, jogando  as vestes um no outro etc. Ao chegarem diante da canoa, atiram toda  a roupa dentro da embarcação, a jovem senta-se nela e o rapaz sai puxando-a, na direção do rio (os bastidores). Logo NEUZINHA retorna, apenas com uma camiseta molhada no corpo e se dirige ao MUNDICO atual.

CENA 19

MÚSICA        De fundo, instrumental.


NEUZINHA   Só vives, assim, pensando. Mas pensando em quê? 
MUNDICO    No que eu vivo buscando. E no que já perdi. (DÃO-SE AS MÃOS E SE OLHAM, EM SILÊNCIO).
NEUZINHA   O mundo é dono de mim.  Mas eu de mim não sou dona.
MUNDICO    E eu vivo numa gaiola de miriti, feito um pobre sabiá, que não pode nem fazer um ninho pra morar com o seu amor.
NEUZINHA   Ah, quem me dera me aninhar nas tuas asas, esquecer as minhas penas e sair
                        voando contigo, pra bem longe daqui!
MUNDICO    Mas cortaram as nossas asas, pinicaram nossos olhos e é só um pio de dar
pena, que a gente pode cantar.

Abraçam-se. Beijam-se.  NEUZINHA retorna, de costas, na mesma direção por onde veio.    
                      
CENA 20

VAVÁ             Pobre pequena! Deixou de ser escrava do patrão, pra ser escrava de qualquer um.
MUNDICO    Agora está lá na zona , na capital, toda borrada de batom e cheia de doença do mundo.
VAVÁ             Chega de pensadeira,  Mundico. Quem pensa não casa.
MUNDICO    E quem casa não pensa.
VAVÁ             Se tu se casasse com ela, ias acabar que nem eu. Uma hora dessas o Zequinha, o Luizinho, o Chiquinho, o Diquinho, a Rosinha, a Mariazinha, a Ritinha e a Cotinha... não, a Cotinha não, que essa ainda é de colo... pois ´tá todo mundo bem cuíra, lá na beira do igarapé, tomando açaí com farinha e peixe assado, tudo espiando rio acima, pra ver quando a minha canoa aparece.
MUNDICO    Mas do jeito que a madrinha Noite já ´tá chegando, com a sua dormideira, quando tu for´ pra casa, a molecada toda já caiu na rede.

VAVÁ põe uma camisa de pano barato e se penteia, usando um espelhinho de bolso, desses com estampa de mulher no verso, vendidos em feiras do Norte e Nordeste.  Pega os teréns e o chapéu de palha.

VAVÁ                        Vam’ bora, Mundico. O pessoal já deve ´star na capela, esperando pela gente.
MUNDICO    É, eu sei. Pra mode pescar um jeito de sair da escravidão.
VAVÁ             Eras, mano, isso havera de ser pai-d’égua! Nunca mais ficar de cabeça quente por causa do açúcar, do café, do querosene, de tudo que a gente compra fiado na bodega do patrão...
MUNDICO    E que ele cobra pela hora da morte.
VAVÁ             Pra gente não acabar nunca de ficar pagando.
MUNDICO    A gente não trabalha pra viver.
VAVÁ             É, a gente passa o resto da vida pagando pra não morrer.
MUNDICO    E acaba morrendo na pindaíba.
VAVÁ             Será que esse vai ser sempre o nosso fado?
MUNDICO    Pior que o da Matinta Perera.

CENA 21

No trapiche, TRABALHADORES em tarefas de rotina, enchem sacos de estopa com

sementes oleaginosas, costuram os ensacados, vão empilhá-los etc. MILICA pega um saco
vazio e põe na cabeça.

MILICA         Eu sou Matinta Perera e o Diabo que me acoite! Mulher de dia, coruja de noite!
CHAGAS      Cruz, credo, Dona Milica, com essas coisas não se brinca!
MILICA                      Eras, seu Menino, só não se brinca, mesmo, é com os fiados que a gente deve, lá no armazém do patrão.
ASSIS            Se a minha conta fosse uma corda e uma arara levasse a ponta pro céu, essa corda já ‘tava chegando lá onde as estrelas faz a cruz.
MILICA          Axi, bacuri! O meu fiado já foi pro céu, pro créu, pro déu, pro léu... e pro beleléu!
XAVIER         Égua, e este degas, aqui? Eu já perdi foi a conta de quantos contos de réis                               vou ter que contar e recontar, só pra pagar a conta que essa conta já conta e o                                     pior é que não dou mais conta nem de fazer conta das contas  e dos contos que
                        ainda tenho pra contar.
CHAGAS      Mas desde os tempos da minha avó, essa história já era assim, sem tirar nem pôr.
ASSIS                        Se o patrão morre hoje, tem logo um filho dele no lugar.
MILICA          E esse filho vai continuar cobrando o pagatório, até dos netos da gente.
ASSIS            Por que essezinhos, coitados...  já nasce tudo devendo.
CHAGAS      O velho não é tão capeta assim. Se todo mundo trabalhar direito e não ficar na gastança...
XAVIER         Égua, mano, deixa de pavulagem! Tua conta é mais pequena que a tua pimba e, mesmo assim, não acabas nunca de pagar.

CENA 22

VAVÁ             Um dia, quem sabe, essa terra vai ser da gente. E aí nós vai poder plantar e vender tudo o que se colheu; vai ter escola pros meninos e pra gente grande; um hospital, com doutor e tudo...
MUNDICO    Eita do sonho paidégua! 
VAVÁ             Mas que dói demais, quando a gente acorda.

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