No ensaio Amazônia: identidade/identificações[1], João de Jesus Paes Loureiro[2], ao criar o conceito de dibubuísmo, definido como “o ato de seguir boiando no rio, ir ‘de bubuia’, levado pela correnteza” (LOUREIRO, 2008, p. 130) imagina a seguinte situação: um caboclo[3] que navega no rio remando sua igarité (pequena canoa cavada a fogo num tronco de árvore) resolve amarrá-la a um marapatá (pequena ilha flutuante formada por porções de terra e vegetação arrancadas das margens pela correnteza dos rios). Atado ao emaranhado de plantas, o homem segue no rumo e no ritmo da maré enchente ou vazante, rio abaixo ou rio acima, sem necessidade de remar. Assim, pode deitar-se no casco da igarité e descansar. A respeito dessa ação humana, o autor reflete:
“Atitude de imobilismo conformado não pode ser, tanto que há o deslocamento de um para outro espaço. Não é, apenas, um deixar-se levar pela correnteza do rio porque o caboclo foi quem tomou essa decisão e pode renunciar a ela no momento que deseje. Há, nesse dibubuísmo, uma integração funcional com o fluir das águas do rio, quando o caboclo se faz parte do dinamismo de seu movimento. Mas ele não está nadando ou remando ou interferindo no ritmo desse devenir. Trata-se de uma espécie de repouso no movimento. Imobilidade móvel e sem imobilismo. Esse gesto revela preguiça? Creio que não. Denota sabedoria? Creio que sim. Por que gastar energias físicas quando não é necessário e se pode deixar que apenas o espírito, a imaginação, o devaneio trabalhem?” (LOUREIRO, J. J. Paes. São Paulo: Escrituras Editora, 2008. P. 130).
Paes Loureiro vê sabedoria na decisão do caboclo de deitar no fundo da canoa em atitude de devaneio, na medida em que compreende esse homem como um ser capaz de transformar essa experiência em ato de conhecimento:
“É pelo devaneio diante da beleza natural que o caboclo exerce a sua compreensão da realidade. Libera sua imaginação no campo de um imaginário com dominância poética através do que é capaz de compreender e recriar a realidade”. (LOUREIRO, J. J. Paes. São Paulo: Escrituras Editora, 2008. P. 130).
Por trás da aparência exterior de quietude e imobilidade, o caboclo mergulha numa atitude contemplativa de natureza estética e “se projeta no objeto de sua contemplação, recriando-o segundo a imagem de seu imaginário, construindo uma espécie de conhecimento interior” (LOUREIRO, 2001, p. 198). Ainda segundo Paes Loureiro, é nesse processo que o homem amazônico, ao ver-se diante de uma natureza de proporções gigantescas “a dimensiona segundo as medidas humanas” (LOUREIRO, 2001, p. 195) e o faz “povoando-a de mitos, recobrindo-a de superstições, destacando-lhe uma emotividade sensível, tornando-a lugar do ser, materializando nela sua criatividade” (LOUREIRO, 2001, p. 195). Assim, o caboclo se vê a si mesmo fundido à própria natureza, como se integrasse uma pintura feita com a técnica renascentista do sfumato que, através de um efeito de esfumaçamento, dilui a figura humana na paisagem, e se constitui no exemplo utilizado por Paes Loureiro para representar simbolicamente a relação do homem amazônico o mundo.
Na medida em que, nesta escrita, investigo a encenação de mitos amazônicos em espetáculos teatrais criados por encenadores paraenses, permito-me partir de formulação alegórica semelhante à do autor e imaginar a mim mesmo simbolicamente colocado na mesma condição daquele caboclo, com sua igarité amarrada àquele marapatá. Assim, aponto o dibubuísmo como conceito-chave de minha metodologia de pesquisa. Para tornar mais clara a proposição, associo poeticamente elementos de meu processo de pesquisa aos elementos que compõem a paisagem contemplada pelo caboclo, como se me deixasse bubuiar também diante de meu próprio objeto.
A partir de agora eu, pesquisador-criador, sua uma igarité flutuante que navega pelo labirinto líquido e misterioso de rios e furos metafóricos. Oculto neles, como aquilo que espera para ser desvendado, meu objeto flutua num espaço localizado entre as imagens concretas das representações cênicas dos mitos amazônicos e o próprio lugar de criação poética dos encenadores, numa espécie de superposição dessas duas realidades que “se dá à semelhança do que acontece com um vitral atravessado pela luz: ora o olhar se fixa nas cores e formas; ora na própria luz que os atravessa; ora, simultaneamente nos dois”. (LOUREIRO, 2001, p. 122). Dessa maneira, à semelhança do caboclo que contempla sempre uma dupla realidade, “a imediata, de função material, lógica e objetiva” (LOUREIRO, 2001, p. 122) e “a mediata, de função mágica, encantatória e estética” (LOUREIRO, 2001, p. 122) redimensiono meu olhar de pesquisador e invento, como fez Guimarães Rosa, uma terceira margem do rio, através da qual:
“O olhar não se confina no que vê. O olhar, através do que vê, vê o que não vê. Isto é, contempla uma realidade visual que ultrapassa os sentidos práticos e penetra numa outra margem do real. (...) Essa outra margem em que aporta o imaginário” (LOUREIRO, J. J. Paes. São Paulo: Escrituras Editora, 2001. P. 123).
É desta forma que, acredito, eu deva contemplar meu objeto fluido, compreendendo-o sempre como algo que está sempre entre encenação e espaço de criação poética do encenador, da mesma maneira que o caboclo utiliza um devaneio “que atua como ligação entre o real e o irreal” (LOUREIRO, 2001, p. 84).
Por outro lado, seguindo a correnteza deste devaneio metodológico, e considerando que toda pesquisa deve sempre revelar quem é o próprio pesquisador e mostrar de onde ele fala, proponho atar-me não aos marapatás feitos não de emaranhados de raízes e plantas, como faz o caboclo, mas aos marapatás feitos das tramas de minhas próprias histórias de vida e das teias de minha trajetória como artista. Dessa maneira, a visão do pesquisador estará sempre ancorada em minhas vivências, criando outras camadas de filtros necessárias a esse olhar.
A atitude de integração com o fluir das águas do rio, por outro lado, aponta não apenas para uma alteração no ritmo e na maneira de contemplar o objeto, que poderá resultar numa percepção mais apurada de sua natureza, da mesma forma que, para o caboclo, “no ser de cada coisa há uma outra coisa” (LOUREIRO, 2001, p. 142) e “tudo parece vir impregnado de uma espécie de ‘aparência essencial’, uma aparência que se converte em essência” (LOUREIRO, 2001, p. 142). Da mesma forma, seguir os movimentos das enchentes e das vazantes, fazer sucessivos percursos de ida e vinda, nos quais, a cada passagem, o objeto se redimensiona diante de cada nova posição deste pesquisador navegante.
Desta maneira, compreendo que o conceito de dibubuísmo se dilata em metodologia para esta pesquisa, ao aproximar a dimensão imaginária do plano de consciência constituindo uma junção entre imaginário e processos racionais. Nas palavras de Paes Loureiro, “o devaneio tripulando a igarité do raciocínio” (LOUREIRO, 2008, p. 130). Ou, se preferirmos, no dizer de Guimarães Rosa ao final do conto A terceira margem do rio: “Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro-o rio.”
[1] Aula inaugural dos cursos de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas, proferida pelo professor João de Jesus Paes Loureiro em março de 2007.
[2] Nascido em Abaetetuba (PA), é poeta e professor, autor da tese de doutoramento Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, defendida na Sorbonne, em Paris, em dezembro de 1994.
[3] Mestiços descendentes de índios e brancos. No sentido que Câmara Cascudo confere ao termo, homem que vem do mato, da floresta, independentemente da condição racial.
oi alberto! parabéns pelo lindo texto. a leitura me encantou. fiquei muito interessada pelo artigo ao qual você se refere, do paes loureiro. apesar de ter procurado, infelizmente não encontrei o mesmo. você compartilharia essa bibliografia?
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